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Opinião

SOS arte e burocracia

Demà serà un altre dia, Pol Clusella (2025). La Capella. © Pep Herrero
SOS arte e burocracia

A burocracia, disse Hannah Arendt, é uma das ferramentas democráticas por excelência. Em editais, solicitações, licitações, intervenções, devemos sempre lembrar, por mais tolos que sejam, que eles são pensados para que todos tenham acesso aos recursos com os mesmos direitos, independentemente de classe, gênero ou raça. Entretanto: uma burocracia mal compreendida, utilizada de forma sistemática e uniforme, e que não leva em conta as particularidades e fragilidades de cada setor onde é implementada, pode se tornar um problema democrático, um limitador de direitos fundamentais. E a cultura e as artes, enquanto uma onda de extrema direita não as levar embora, ainda estão lá.

Nos últimos anos, os profissionais livres das artes do país (artistas, curadores, diretores de arte, críticos, galeristas), vêm sofrendo os efeitos de uma nova onda de reformas burocráticas que surgiram em grande parte da interpretação da Lei de Contratos de 2017. Em muitos municípios, o curador ou artista passa a ser solicitado, por pequenas quantias, a fazer o impensável: fornecer orçamentos prévios com valores acordados; fornecimento de conteúdo não pago; justificação de dados pessoais; registrar-se em portais obsoletos; em alguns casos extremos recentes, a mesma burocracia exigida torna impossível a execução temporal e material da mesma obra artística solicitada, entrando numa deriva kafkiana indizível.

Nos casos mais complexos, a coisa escala para limites insuspeitos: em licitações para contratos de direção artística (vimos isso na última, na La Capella), o candidato é solicitado a apresentar um seguro pessoal para garantir a solvência econômica, como se fôssemos grandes empresários ou acionistas. São oferecidos contratos de gestão limitados a 2 anos (caso Fabra i Coats analisado pelo PAV). Justificativa certificada de tudo o que é anunciado. E assim por diante, o que está levando os profissionais e técnicos da cultura ao desespero, com um novo fenômeno agravante: está desestimulando os profissionais a se candidatarem; produções estão sendo adiadas; A livre expressão artística e cultural de artistas, diretores e curadores está sendo empobrecida e limitada.

Todos os advogados consultados reafirmam que nenhuma lei exige esse frenesi de empecilhos e exigências burocráticas, mas sim que na maioria dos casos são interpretações da lei 09/2017, com instruções vindas “de cima” das administrações; de um “acima” que está tão “acima” que é completamente inacessível, que todos temem e com quem não se pode dialogar para encontrar um entendimento e promover uma atitude empática e compreensiva em relação à fragilidade estrutural do nosso setor. Decisões que vêm, dizem-nos, de intervenções que se aninham nos altos cargos de entidades públicas e que ditam instruções e protocolos que todos devemos seguir, para termos a tranquilidade de que todo o sistema funciona de forma imaculada e supervisionável.

A filósofa e atual diretora do Bòlit Íngrid Guardiola, em seu ensaio A servidão dos protocolos, fala desse fenômeno como uma "fetichização tendenciosa da lei", impulsionada por premissas que buscam obter registros imaculados e controláveis, como se fossem um dogma religioso inquestionável. Tudo deve ser planejado, supervisionado, demonstrado, radiografado, verificado e contrastado. Mas essa rigidez “tecnoburocrática” está em absoluta contradição com a natureza das artes: que trabalham a partir da incerteza, da dúvida, da experimentação, da mudança, da liberdade de criação. A lei deve ser capaz de se adaptar a essa natureza para torná-la possível, como decorre da Constituição, que entende “a promoção e a proteção da cultura” como um direito fundamental. Como um artista pode prever com dois anos de antecedência qual peça irá produzir, com quais materiais, com quais fornecedores, com quais parafusos e de qual marca? Como um curador pode pressupor como será toda uma produção artística que está prestes a ser feita? Como um diretor artístico pode se dedicar à programação de conteúdo se a maior parte do tempo ele tem que estar antecipando e documentando seu trabalho e gerenciando os mil e um arranjos tecnológicos que surgem?

O que deveria ter sido uma etapa frutífera e gratificante na carreira profissional de Íngrid Guardiola está se tornando, como ela reconhece, uma tortura pessoal na hora de cumprir a lei para contratar e remunerar profissionalmente artistas, curadores e agentes do setor. Resultado: uma das melhores gestões que o país teve nos últimos anos não está se candidatando novamente à nova convocação feita recentemente após o término de seu vínculo contratual.

Nós, profissionais autônomos das artes, exigimos medidas sensatas e urgentes das administrações para trabalhar ativamente na resolução das regulamentações burocráticas que já estão retardando a articulação da criação artística em nosso país. A classe política deve conscientizar e influenciar intervenções para adaptar a lei dos contratos aos trabalhadores da cultura, que se baseiam em uma realidade econômica deplorável. Porque a cultura e as artes são um direito de cidadania, e as administrações têm o dever de fazê-lo cumprir.

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